terça-feira, 29 de setembro de 2009

Vozes novas de passarinhos - Uluart


Primavera
Cecília Meireles

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como
os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias
tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-
se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as
amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram
pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas
de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega,
coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados
de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a
terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens
terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes
deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão
outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os
ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro
dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas
vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda
conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os
manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada
coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão
sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas
roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por
fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos
a primavera, dona da vida — e efêmera.

Cecília Meireles em Obra em Prosa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário